Publicação
original: "Die
Aktion", Setembro de 1929.
Fonte
da versão base: VIANA, Nildo (org.).
Escritos Revolucionários sobre a Comuna
de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
Transcrição:
Editor.
Tradução:
Nildo Viana
Informações
adicionais:
O que deve
saber sobre a “Comuna Revolucionária” todo
operário com consciência de classe neste momento
histórico em que vivemos e no qual a
autolibertação revolucionária do jugo
capitalista por parte da classe operária se
coloca na ordem do dia? E o que sabe dela hoje
inclusive a parte politicamente mais preparada
e, conseqüentemente, relativamente
autoconsciente do proletariado?
Existem a este
respeito alguns fatos históricos e algumas
palavras de Marx, Engels e Lênin relacionadas
com eles que, na conjuntura atual, depois de
meio século de propaganda social-democrata –
durante todo o período do pré-guerra – e da
série de acontecimentos verdadeiramente
transcendentais dos últimos quinze anos,
passaram a tomar parte decidida da consciência
proletária, por muito que nas escolas da atual
república “democrática” se fale, apesar de tudo,
tão escassamente dessas questões como nas
escolas da velha monarquia imperial. Trata-se da
história e do significado profundo da gloriosa
Comuna de Paris, que desfraldou a bandeira
vermelha da revolução proletária em 18 de março
de 1871 e a manteve desfraldada durante setenta
e dois dias de lutas encarniçadas contra um
mundo exterior armado até os dentes e empenhado
em um ataque de morte contra ela. Trata-se,
enfim, da comuna revolucionária do proletariado
parisiense de 1871, da qual Marx disse no
Manifesto do Conselho Geral da Associação
Internacional dos Trabalhadores de 30 de maio de
1871 sobre a guerra civil na França, que “seu
verdadeiro segredo” foi ter sido,
fundamentalmente, um governo da classe
operária, “o resultado da luta da classe
produtora contra a classe que se apropria do
trabalho alheio, a forma política finalmente
encontrada que permitia realizar a emancipação
econômica do trabalho”. Friedrich Engels, de
maneira similar, vinte anos depois, jogava na
cara dos filisteus aterrorizados, no momento em
que a fundação da Segunda Internacional e a
instituição da comemoração proletária do
primeiro de maio[1]
como forma de ação direta de massas a nível
internacional voltava a encher de temor as
classes proprietárias, as seguintes frases
cheias de orgulho: “Querem saber a forma dessa
ditadura? Olhem a Comuna de Paris, eis a
ditadura do proletariado”. E mais de duas
décadas depois, o maior político revolucionário
de nossa época, Lênin, retornou a este tema,
levando a cabo, na parte central da mais
importante de suas obras políticas, O Estado
e a Revolução, uma detalhada análise das
experiências da Comuna de Paris e da luta contra
a deformação oportunista e a mistificação dos
importantes ensinamentos que já Marx e Engels
souberam extrair daquele período histórico. E
quando, poucas semanas depois da revolução russa
de 1917, que começou em fevereiro como revolução
nacional e burguesa e acabou por converter-se,
superando suas limitações de cunho nacional e
burguês e ampliando e aprofundando suas
perspectivas, em primeira revolução
proletária do mundo, tanto Lênin e Trotski
como as massas operárias da Europa ocidental e
os setores mais progressistas da classe operária
de todo mundo saudaram a nova forma de governo
criada por essa ação revolucionária de massas,
isto é, o sistema revolucionário dos
conselhos, como o prolongamento direto da
comuna revolucionária gestada meio
século pelos operários de Paris.
Até aqui está
tudo bem. Por mais confusa que tenha sido a
ideia que os operários revolucionários, no
período de ascensão e impulso revolucionários
que seguiu em toda Europa as comoções políticas
e econômicas desencadeadas pelos quatro anos de
guerra mundial, sustentaram ao pronunciar a
fórmula “todo o poder aos conselhos” e por muito
profundo que tenha sido o abismo que já começava
a abrir-se entre dita imagem e a realidade que
ia forjando-se na nova Rússia sob o rótulo de
“República socialista dos conselhos”, não cabe
dúvida de que naqueles anos a luta pelos
conselhos representava uma forma de evolução
política da vontade política de uma classe
proletária e revolucionária em plena urgência
de realização. Na verdade, unicamente os
filisteus amargurados podiam protestar então
contra a indefinição que inevitavelmente cercava
essa ideia, tal como toda ideia não realizada, e
só os pedantes triviais podiam investir na
tentativa de remediar esta deficiência através
de “sistemas” artificialmente elaborados no
terreno da imaginação, como o desacreditado
“sistema de caixinhas” de Däumig e Richard
Müller. Em todos aqueles lugares nos quais, da
mesma forma tão efêmera na Hungria e Baviera em
1919, o proletariado constituiu sua ditadura
revolucionária de classe, a concebeu, denominou
e constituiu como “governo da
classe operária”, governo que era o resultado
da luta da classe produtora contra a classe
que explora o trabalho alheio, e cujo objetivo
último se consolidava na plena realização da
“libertação econômica do trabalho”, um
governo definido, enfim, como “governo
revolucionário de conselhos”. E se o
proletariado tivesse triunfado naquela época em
algum dos grandes países industriais – na
Alemanha, por exemplo, quando a grande greve da
primavera de 1919 ou em resposta ao putsch de
Kapp em 1920, ou ainda, na seqüência, da greve
de 1923 contra a ocupação do Ruhr e a inflação;
ou na Itália durante a época das ocupações de
fábricas, em Outubro de 1923 – teria constituído
seu poder sob a forma duma república
dos conselhos e se unido à “república
federativa socialista soviética da Rússia”, já
existente, no quadro duma confederação
mundial das repúblicas revolucionárias dos
conselhos.
Nas atuais
circunstâncias, contudo, a ideia dos
conselhos e a existência de um governo
dos conselhos pretensamente "socialista" e
"revolucionário" têm um significado
completamente distinto. Hoje – em que a
superação da crise econômica mundial de 1921 e
as conseqüentes derrotas dos operários alemães,
poloneses e italianos, ao que se seguiu uma
série de novas derrotas proletárias até a greve
dos mineiros e greve geral inglesa de 1926 e o
capitalismo europeu inaugurou um novo ciclo de
sua ditadura sobre uma classe operária
derrotada – quando, portanto, nos
encontramos diante de novas condições objetivas,
os lutadores da classe proletária e
revolucionária de todo o mundo não podem seguir
agarrando-se de maneira acrítica e estática à
nossa velha fé na importância revolucionária da
ideia dos
conselhos e no caráter revolucionário do governo dos
conselhos como manifestação recente e
evoluída da forma política da ditadura proletária
“encontrada” há meio século pelos comunardos
franceses.
Hoje, frente às
contradições flagrantes que existem entre o nome
e a realidade efetiva da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, não podemos dar-nos por
satisfeitos com a constatação, por exemplo, de
que os atuais mandatários russos “traíram” o primitivo
princípio revolucionário dos conselhos, de
forma similar como Scheidemann, Müller e Leipart
“traíram” seus princípios socialistas
“revolucionários” do pré-guerra.
Limitar-se a isso seria ao mesmo tempo
superficial e errôneo. É obvio que se trata de
uma dupla verdade inquestionável. Os
Scheidemann, Müller e Leipart traíram, sem
dúvida, seus princípios socialistas. E, por
outro lado, a “ditadura” que hoje é exercida
pela cúpula máxima do aparato de um partido
governamental extremamente exclusivista – e que
apenas o nome recorda o primitivo partido
“comunista” e “bolchevique” – sobre o
proletariado e toda a Rússia soviética com a
ajuda de uma burocracia extremamente
desenvolvida, tem em comum com as ideias
revolucionárias dos conselhos de 1917 e 1918
exatamente a mesma coisa que tem com elas a
ditadura do partido fascista do velho
social-democrata revolucionário Mussolini na
Itália. Porém, em ambos os casos é tão pouco o
que se explica falando de “traição”, que é
muito mais o fato da própria traição que
necessita ser explicado.
A verdadeira
tarefa que esta evolução contraditória – que
levou do velho lema revolucionário de “todo o
poder aos conselhos” ao atual regime capitalista
e fascista do pretenso “estado socialista
soviético” – coloca para todos nós, socialistas
revolucionários com consciência de classe, de
uma forma realmente urgente, não é, na verdade,
senão uma tarefa de autocrítica
revolucionária. Temos que reconhecer que
não só para as ideias e instituições do passado
feudal e burguês, mas também para as diversas
formas de pensamento e organização engendradas
pela própria classe operária nos anteriores e
sucessivos períodos de sua luta pela
autolibertação histórica, tem validade essa dialética
revolucionária em virtude da qual “o bem
de ontem se converte no mal de hoje”, para
utilizar palavras de Goethe, ou, como Karl Marx
veio a dizer de forma mais clara e incisiva,
todo estágio histórico de uma forma evolutiva
das forças produtivas revolucionárias e da ação
revolucionária, assim como a evolução da
consciência, pode converter-se, em um
determinado ponto do seu processo evolutivo, em
um obstáculo
para o mesmo. A esta contradição dialética da
evolução revolucionária estão submetidas, tal
como as demais ideias e produções históricas,
também essas formações na ordem do pensamento e na
da organização próprias de uma determinada
fase histórica da luta revolucionária de
classe, como a forma política “finalmente
encontrada” à quase sessenta anos pelos comunardos
franceses e estruturada como forma de governo
próprio da classe operária ao modo da comuna
revolucionária e seu herdeiro, o “poder
revolucionário dos conselhos”, oriundo de
um novo período histórico de luta através dos
impulsos do movimento revolucionários dos
operários e camponeses russos.
Ao invés de
lamentarmos a “traição” à ideia dos conselhos e
a degeneração dos conselhos, devemos realizar
uma síntese, de maneira sóbria, serena e
historicamente objetiva, da evolução da
totalidade desse processo, elaborando uma visão
histórica de conjunto que dê
conta de suas fases sucessivas, fazendo-nos, por
último, a pergunta crítica: qual é, de
acordo com essa experiência histórica, o
significado real da ordem histórica e
classista desta nova forma de governo,
cristalizada inicialmente na comuna
revolucionária de 1871, aniquilada pela força ao
fim de setenta e dois dias de vida, e que
encontrou sua expressão mais concreta e recente
na revolução russa de 1917.
Procurar uma
nova imagem, muito mais profunda e orientadora,
do caráter histórico e classista da comuna
revolucionária e sua continuação no sistema
revolucionário dos conselhos, resulta duplamente
necessário se se pensa que inclusive a crítica
histórica mais superficial mostra o totalmente
infundado dessa concepção tão divulgada hoje
entre os revolucionários. Dita concepção, apesar
de depreciar teoricamente o parlamento
como instituição burguesa por sua origem e sua
função e praticamente indica a necessidade de
“aniquilá-lo”, no chamado “sistema de
conselhos” e em sua forma precedente, a “comuna
revolucionária”, vislumbra, ao mesmo
tempo, uma forma de governo total e
essencialmente proletária, oposta, por sua
própria natureza, de maneira inconciliável e
contraditória ao estado burguês. Na realidade, a
“comuna” representa, ao longo de sua evolução
quase milenar, não só uma forma de governo
burguês mais antiga que o parlamento, mas que
constitui – desde seus começos no século XI até
seu ponto culminante no momento auge do
movimento revolucionário da burguesia, isto é,
na grande revolução francesa de 1789-1793 – a forma
mais pura, precisamente, na ordem
da luta de classes que, sob distintas
modalidades, levou a cabo durante todo este
período histórico a então revolucionária
classe burguesa para conseguir a transformação
da ordem social feudal existente até o momento
e edificar a nova ordem social de cunho
burguês.
Quando,
na
frase que citamos anteriormente – tomada de A
Guerra Civil na França –, Marx celebrava
a comuna revolucionária dos operários
parisienses do ano de 1871 como “a forma
finalmente encontrada que permitia realizar a
emancipação econômica do trabalho” era, ao
mesmo tempo, consciente de que a forma herdada
das seculares lutas burguesas de libertação da
“comuna” só podia assumir este caráter
novo ao preço de uma
transformação radical de sua essência anterior.
Toma posição expressamente contra as falsas
concepções de todos que queriam ver, em seu
tempo, nesta “nova
comuna, aniquiladora do poder de estado”
uma “versão renovada das comunas medievais
anteriores a dito poder estatal e que
assentaram, na realidade, as bases do mesmo”. E
estava muito longe, portanto, de esperar
qualquer tipo de efeitos milagrosos para a luta
de classes do proletariado da forma
política do regime comunal enquanto tal,
considerada independentemente do conteúdo
classista específico com o qual, em sua opinião,
haviam preenchido os operários de Paris esta
forma política por eles conquistada e posta ao
serviço de sua autolibertação econômica em um
determinado momento histórico. De acordo com sua
análise desse problema, os operários de Paris
fizeram de sua forma herdada da “comuna” um
instrumento de seus fins revolucionários –
opostos radicalmente à finalidade histórica
original da mesma – em virtude, precisamente, de
seu caráter pouco
evoluído e relativamente indeterminado.
Enquanto que no estado
burguês plenamente desenvolvido, tal e
como foi formando-se – na França, por exemplo –
em sua versão clássica, isto é, como estado
representativo moderno centralizado, o poder
estatal não é mais do que, de acordo com a
conhecida expressão do Manifesto
Comunista, outra coisa que “um comitê de
administração do conjunto de negócios da
burguesia”, nas formas provisórias e pouco
desenvolvidas da estrutura estatal burguesa,
entre as quais é preciso situar a comuna
“livre” medieval, este caráter classista
especificamente burguês, consubstancial a todo
estado, exige uma fisionomia completamente
diferente. Frente ao posterior e cada vez mais
evidente e cada vez mais elaborado caráter do
poder estatal burguês de “instrumento público
repressivo para a opressão da classe
operária”, de “máquina para o domínio
classista” (Marx), nesta fase primitiva de sua
evolução pesa, todavia, mais a finalidade
original da organização burguesa de classe
como órgão da luta revolucionária de
libertação da classe burguesa oprimida contra
o domínio feudal medieval. Por muito pouco que
esta luta da burguesia medieval tinha em comum
com a luta proletária de emancipação da época
histórica contemporânea, era, não obstante,
uma luta
de classes histórica, e nesta medida –
ainda que, desde já, somente nela – os
instrumentos criados pela burguesia de acordo
com as necessidades de sua luta revolucionária
não deixam de oferecer também um ponto de
partida puramente formal para a luta de
emancipação revolucionária que atualmente,
sobre bases totalmente distintas, em condições
extremamente diferentes e com vista a outros
objetivos, protagoniza a classe proletária.
Marx chamou prontamente a atenção
sobre a especial importância que essa série de
experiências e conquistas provisórias da luta de
classes realizada pela burguesia, cuja expressão
mais importante pode ver-se nas diversas fases
evolutivas da comuna revolucionária burguesa
da Idade Média, foi-lhe correspondendo na
formação tanto da moderna consciência proletária
de classe como da luta de classe do
proletariado, e o fez muito antes, inclusive, do
que o grande acontecimento histórico da
sublevação dos comunardos parisienses de 1871 lhe
induzira a saudar esta nova comuna
revolucionária dos operários de Paris como a
forma política finalmente encontrada da
emancipação econômica do trabalho. Devemos a
Marx, a este respeito, a demonstração da analogia
histórica existente entre a evolução
política da burguesia como classe oprimida
e em luta por sua libertação no seio do estado
feudal medieval e a evolução do proletariado
na moderna sociedade capitalista. Uma
analogia da que se serviu, por certo, como
importante ponto de partida em sua teoria
dialética e revolucionária sobre a
importância dos sindicatos e das lutas
sindicais – uma teoria ainda não
compreendida plena e adequadamente, nem sequer
em nossos dias, por um bom número de marxistas
tanto de inspiração esquerdista como direitista.
Marx, nessa teoria, comparou as modernas coalizões
de operários com as comunas da burguesia
medieval, sublinhando o fato histórico de que também
a classe burguesa começou sua luta contra a
ordem social feudal com a formação de
coalizões. Já em seu escrito polêmico
contra Proudhon encontramos a seguinte
referência, hoje verdadeiramente clássica, sobre
esta questão:
“Fizeram-se
não
poucos estudos para apresentar as diferentes
fases históricas percorridas pela burguesia
desde a comunidade urbana (comuna) até sua
constituição com classe. Porém, quando se trata
de tomar boa nota das greves, coalizões e outras
formas das que os proletários se servem para
culminar ante nós sua organização como classe,
alguns são presa de verdadeiro espanto e outros
fazem gala de um desdém transcendental” (A
Miséria da Filosofia, cap. 2, parágrafo
5).
O que aqui expressa o jovem Marx em
meados dos anos quarenta, quando ainda é recente
sua evolução ao socialismo proletário, e repete
sem maiores variações anos depois em sua
exposição dos diversos estágios evolutivos da
burguesia e do proletariado no Manifesto
Comunista, volta novamente a expressá-lo
vinte anos depois na conhecida Resolução do
Congresso de Genebra da Associação
Internacional dos Trabalhadores concernente
aos sindicatos. Ali
se afirma destes que já em sua anterior
evolução, e sem ser conscientes disso, mas além
de suas tarefas cotidianas imediatas de defesa
dos salários e da jornada de trabalho dos
operários contra as incessantes investidas do
capital, “haviam chegado a converter-se em
pontos verdadeiramente culminantes da
organização da classe operária, de maneira
similar a como as municipalidades e
comunidades medievais haviam sido para a
burguesia”, de tal modo que no futuro haveriam
de trabalhar já de maneira consciente como bases
da organização do conjunto da classe operária.
[1] A
chamada Segunda Internacional, acatando
proposta de Raymond Lavigne, em 20 de junho
de 1889, convoca uma manifestação anual com
o objetivo de lutar pela redução da jornada
de trabalho a oito horas diárias. O dia
escolhido foi o 1º de Maio, em homenagem às
lutas dos trabalhadores de Chicago/EUA,
quando pelo mesmo motivo e no mesmo dia, os
trabalhadores norte-americanos fizeram
manifestações de ruas que se desdobraram em
conflitos e mortes no dia seguinte.