A
DEMOCRACIA
BURGUESA COMO VALOR UNIVERSAL
Nildo Viana
Publicação original:
Revista Brasil Revolucionário. Vol. 08, 1991. |
Fonte da versão base:
Blog Informe e Crítica, 2014. |
Transcrição: |
Tradução: |
Autorização para
publicação: Nildo Viana. |
Informações
adicionais: http://informecritica.blogspot.com.br/2014/10/a-democracia-burguesa-como-valor.html
|
A questão democrática é
um tema que vem sendo
muito discutido no Brasil. A crise do Leste Europeu coloca
em discussão a
relação entre socialismo e democracia. Neste debate surge a
tese que diz que a democracia
é um valor universal. O Brasil importou esta tese da Europa
Ocidental, onde
desde Kautsky aos euro-“comunistas” é defendida, e colocou-a
em evidencia no
debate sobre a democracia. Mas não se deve estranhar que o
“universal” não seja
nativo e sim estrangeiro. Nesse caso nós apenas assimilamos
algo estranho a nós
como se fosse “nosso”. Isto é normal a povos subjugados pelo
imperialismo. Mas
onde existe submissão existe rebelião. Então, é hora de
começar a nos rebelar.
A democracia
representativa vem sendo
apresentada principalmente como: a) uma conquista da classe
trabalhadora; b)
condição para implantação do socialismo; e c) um valor
estratégico permanente
que será conservado no comunismo. Para os que defendem tal
tese, a democracia
representativa surgiu das lutas dos trabalhadores e por isso
é uma conquista da
classe operária. Esta concepção considera que a classe
operária molda as
instituições e a sociedade de acordo com sua vontade
arbitrária. As demais
classes sociais não participam da história. Mas abandonando
esta concepção
positivista e substituindo-a por uma concepção dialética,
afirmamos que a
democracia representativa é um resultado da luta de classes.
A classe operária ao
lutar com a burguesia
queria ir além da democracia representativa e a burguesia
não queria chegar até
ela. Este resultado da luta de classes significou a vitória
da burguesia, pois
se ela recuou foi para manter sua dominação e o avanço do
proletariado levou-a
apenas a mudar a forma de dominação burguesa. Nessa luta o
proletariado não
atingiu o seu objetivo (o comunismo) e a burguesia atingiu o
seu (a conservação
do capitalismo). Pode-se dizer que essa derrota do
proletariado trouxe-lhe
algumas vantagens para a sua luta posterior contra a
burguesia, mas não se deve
esquecer que elas foram muito limitadas e que trouxeram
simultaneamente várias
desvantagens e que parte das vantagens conquistadas se
perdeu com o
desenvolvimento histórico devido ao fato da burguesia
integrar esse sistema
(democracia representativa) com cada vez mais eficiência na
sua lógica de
dominação.
Os ideólogos da
“democracia como valor
universal” nos dizem que ela é condição necessária para a
implantação do
socialismo. Esta tese se sustenta com a argumentação de que
as liberdades
políticas beneficiam a luta dos trabalhadores e se
complementa na sociedade
comunista que conservará certos “institutos democráticos”,
necessários para a
existência de uma vida democrática.
Vê-se claramente o
caráter evolucionista de tal
concepção. Segundo um autor brasileiro: “do mesmo modo como
as forças
produtivas materiais necessárias à criação da nova formação
econômico-social já
começam a se desenvolver no seio da velha sociedade
capitalista, assim também
esses elementos da nova democracia (da
democracia de massa) já se esboçam – em oposição aos
interesses burgueses e aos
pressupostos teóricos do liberalismo clássico – no seio dos
regimes políticos
democráticos ainda dominados pela burguesia. No primeiro
caso, trata-se de
suprimir as relações de produção capitalistas para que as
forças produtivas
materiais possam se desenvolver plenamente, de modo adequado
à emancipação
humana; no segundo caso, trata-se de eliminar o domínio
burguês sobre o Estado
a fim de permitir que esses institutos políticos
democráticos possam alcançar
pleno florescimento e, desse modo, servir integralmente à
libertação da
humanidade trabalhadora”[1].
Assim afirma-se que a
democracia burguesa é uma
condição para a democracia “socialista” e que a “evolução”
das forças
produtivas e a “evolução” da democracia política levam ao
socialismo. Este
evolucionismo unilinear que considera as forças produtivas e
o estado como
instrumentos que se aperfeiçoam na história é, como notou
Rosa Luxemburgo, o
caminho do reformismo: “a teoria da realização progressiva
do socialismo por
intermédio de reformas sociais implica – e é aí que se
encontra o seu
fundamento – um certo desenvolvimento objetivo tanto na
propriedade privada
como do estado”[2].
Acrescente-se a isso a visão instrumentalista das forças
produtivas e do estado
que mudariam “automaticamente”, eliminando-se as relações de
produção e o
domínio burguês[3].
Esquece-se o que é o estado e, pior ainda, adota-se uma
visão simplista e
mecânica a respeito das forças produtivas.
Pelo visto este autor dá
um grande valor à
questão do método. Apesar disto não só fez as afirmações
acima citadas como
também esta: “a relação da democracia socialista com a
democracia liberal é uma
relação de superação (aufhebung):
a
primeira elimina,
conserva e eleva
a nível superior as conquistas da segunda”[4].
Como se vê, a ênfase é colocada na “conservação” e na
“elevação” ao invés de
ser na eliminação (que superação mais conservadora!). Marx,
comentando Hegel,
disse que para este “a negação da negação não é a
confirmação do verdadeiro ser
pela negação do ser ilusório” mas “é a confirmação do ser
ilusório”[5].
O
mesmo se aplica à tese acima exposta: a negação da negação
não é a confirmação
da verdadeira democracia pela negação da democracia ilusória
mas é a
confirmação da democracia ilusória.
Outro equívoco desta
abordagem está em não
tomar as sociedades contemporâneas como uma totalidade
concreta e onde o modo
de produção é a
determinação
fundamental. A ênfase na “democracia política” e na “teoria
ampliada do estado”
significa desconhecer a essência e se iludir com a
aparência. O modo de
produção é apagado e substituído pela formação social
criando-se uma
“totalidade abstrata”. É o que o filósofo Karel Kosik chama
de o “mundo da
pseudoconcreticidade”[6].
Partindo desses
pressupostos chega-se a
conclusão evidente de que se deve formar uma aliança de
classes, incluindo até
“setores da burguesia”, e aprofundar a democracia de massas.
Vê-se que tal
posição defende a reforma legal para aprofundar a democracia
e chegar ao
socialismo. Mas desde Rosa Luxemburgo sabemos que “a reforma
legal e a
revolução não são métodos diferentes do progresso histórico
que se possam
escolher a vontade como se se escolhessem salsichas ou
carnes frias para
almoçar, mas fatores diferentes da evolução da sociedade
classista, que se condicionam
e se completam reciprocamente, excluindo-se, como, por
exemplo, o pólo norte e
o pólo sul, a burguesia e o proletariado”[7].
Adere-se a política da
burguesia e apesar das citações de Marx, Engels, Lênin e
Gramsci, os defensores
destas teses, são, na realidade, herdeiros de Kautsky e
Bernstein.
Mas será que eles não
têm razão? As liberdades
políticas não beneficiam a luta dos trabalhadores? A
resposta é a seguinte: em
uma democracia representativa há liberdade de organização,
de reunião, de
manifestação e principalmente há espaço para uma “guerra de
posição” que
possibilita a classe operária dominar certos institutos
democráticos e
utilizá-los para implantar a sua “hegemonia”. Mas vejamos
tudo isto mais de
perto. Comecemos pela liberdade de organização: para se
organizar em partido
político é necessário atender a certas exigências do sistema
político nacional,
que só é possível tendo uma sólida estrutura financeira e
burocrática, pois é
preciso contratar funcionários, ter local para os
diretórios, de uma gráfica
(ou recursos para as despesas de publicação), etc. Isto cria
uma dificuldade
enorme para a classe trabalhadora devido ao seu baixo nível
de renda. Isto
também se reflete na possibilidade de existência e
eficiência de todas as
outras organizações operárias, exceto os sindicatos, devido
à contribuição
sindical obrigatória, mas ela se torna isolada das massas já
que o seu campo de
ação é a categoria profissional, onde geralmente uma minoria
é sindicalizada, e
também é um lugar propício à burocratização e à subordinação
a outras
organizações mais amplas (partidos, estado).
A liberdade de reunião,
por sua vez, só é
possível havendo locais para realizá-las e as classes
exploradas não possuem
estes locais e nem os recursos para consegui-los.
Finalmente, a liberdade de
manifestação é uma ficção. Além das dificuldades de
organização e reunião que
influenciam as possibilidades de “livre manifestação”, ela é
limitada pelas
leis e pelo fato dos trabalhadores não terem tempo, acesso a
informações e
condições financeiras para sistematizar suas ideias e
manifestá-las.
É claro que tudo isso só
é aplicável à classe
trabalhadora. Para a burguesia é o contrário que vale, como
demonstra, para
ficar em apenas um exemplo, o seu monopólio sobre os meios
de comunicação de massas.
As chamadas “liberdades políticas” na sociedade burguesa
consistem no “direito
à liberdade” que na verdade contradiz a liberdade real, pois
tal direito é uma
impossibilidade prática (exceto para a burguesia). A
desigualdade financeira
faz da “liberdade” burguesa uma ficção.
Resta-nos analisar o
campo que a “democracia”
nos reserva para a “guerra de posição”. Todos sabem que para
conquistar a
famosa “hegemonia” é necessário forjar os meios materiais
que a tornem
possível. Esses meios materiais, segundo alguns teóricos,
são conquistados
pelas forças populares na disputa com as forças reacionárias
e são os que se
pode chamar “institutos democráticos”. Estes se encontram na
sociedade civil e
na sociedade política. Mas quem deve conquistá-los? As
massas populares e os
partidos democráticos. Podemos dizer que as “massas
populares” acabam
submetendo os “institutos democráticos” que conquistaram a
organizações
burocráticas (partidos, estados, etc.). As causas disto são
as seguintes: a) as
classes exploradas, no capitalismo, devido suas condições de
vida (condições
financeiras, falta de tempo, cansaço, etc.) e a corrupção
generalizada da
sociedade burguesa não participam nestes “institutos
democráticos”, sendo coisa
de minorias; b) entre essas minorias participantes, surgidas
das massas, grande
parte persegue seus interesses pessoais (por exemplo,
utilizar um cargo na
associação de bairro como trampolim para se candidatar a
vereador); c) outra
parte dessas minorias participantes, que poderíamos
denominar de “esquerda”
utilizam estes institutos como correias de transmissão dos
seus partidos; e d)
essas minorias, a carreirista e a de “esquerda”, acabam
seguindo a dinâmica do
estado capitalista e da “conjuntura política”. Mas não se
deve esquecer que
existem exceções entre estas “minorias”. De tudo que foi
visto, o que se nota é
que a política continua sendo definida de “cima para baixo”
e não como quer os
ideólogos da democracia como valor universal, de “baixo para
cima”. A ideia
contrária só é possível quando não se compreende a relação
entre
estado/sociedade e de ambos com os partidos políticos.
Segundo a ideologia da
democracia como valor
universal, as forças populares precisam manter uma unidade
na sua luta que é
realizada no(s) partido(s) democrático(s) de massa,
principalmente os da classe
operária. O partido é a síntese das forças populares e busca
pressionar/conquistar a sociedade política. Esta tese revela
mais uma vez a
visão instrumentalista: o partido é um instrumento das
forças populares. Na
verdade, os partidos políticos não são instrumentos e não
representam as
classes exploradas (“massas”, “forças populares”).
Contudo, não há espaço
aqui para colocar a
questão do partido de forma aprofundada e por isto faremos
apenas alguns
apontamentos[8].
O
partido político para disputar o espaço da sociedade
política tem que atender
as exigências do sistema político que inclui sua adaptação
ao sistema
partidário e eleitoral. Para se adaptar ao sistema
partidário é preciso cumprir
as exigências legais como possuir diretórios em diversas
cidades para ser
registrado e não fazer propaganda política contrária ao
“regime democrático”.
Isto coloca, consequentemente, dois tipos de exigência: de um lado
estrutura financeira e
burocrática; de outro lado, limites à divulgação de sua
concepção política.
Mas além disso, o
sistema partidário cumpre um
papel ideológico junto às classes exploradas: “é o sistema partidário que permite indivíduos com
pontos de vista
ideológicos opostos a manter lealdade
ao Estado: livre pensamento implica em pontos de vista
divergentes assim como
preferências, e indivíduos com preferências partidárias
diferentes podem sempre
aspirar a que seu partido possa subir ao poder através de
eleições livres, e se
isto termina por não se concretizar, pelo menos isto sucedeu
no jogo eleitoral
justo (oferecido pelo estado através do sistema
eleitoral)”[9].
A adaptação ao sistema
eleitoral coloca como
exigências: a existência de diretórios ou executivas
provisórias, o registro de
candidaturas, etc. Mas isto é seu aspecto puramente formal.
O sistema eleitoral
é muito mais complexo do que deixa transparecer as
exigências legais de
participação. Ele revela seu “lado oculto” quando notamos
que o objetivo dos
partidos e candidatos é ganhar as eleições. Aliás, os
próprios sistemas
partidário e eleitoral forçam os partidos a isto sob pena de
marginalização
(por exemplo, nos meios de comunicação). Para conquistar a
vitória eleitoral é
necessário deter enormes somas de recursos financeiros. É
isto que possibilita
a propaganda de massas (panfletos, outdoors, comitês,
automóveis, aparelham de
som, distribuição de brindes, etc.) e sem ela é muito
difícil um bom desempenho
nas eleições.
A propaganda de massas é
outro elemento
necessário nos grandes centros urbanos com sua população
densa. Ela consiste,
essencialmente, em divulgar para a maior camada possível da
população o nome
dos candidatos. Nós sabemos que outdoors, adesivos, etc.,
não apresentam
nenhuma mensagem política e que os panfletos, geralmente com
o nome, o número e
a foto e a biografia do candidato (alguns melhor elaborados
contém mensagens
políticas genéricas ou demagógicas), também não trazem
nenhum conteúdo político
criterioso e por isso não é difícil perceber o caráter
despolitizante da
propaganda de massas, mesmo quando feita pelas “esquerdas”.
Outro fator importante
que serve para amortecer
a reprodução da luta de classes na disputa eleitoral é o
condicionamento do
discurso pelo sistema eleitoral, principalmente quando o
objetivo é a vitória
eleitoral. Os partidos de “esquerda” tendem a considerar a
classe trabalhadora
“despolitizada” e como realmente o voto desta vai para
diversos partidos (de
direita e de “esquerda”), ele se torna fragmentário e a
conquista dos votos das
classes auxiliares da burguesia passa a ser necessário.
Entretanto, a classe
trabalhadora e as classes auxiliares da burguesia possuem
interesses diferentes
e por isso o discurso político se torna moderado e voltado
para atender os mais
variados interesses. Os partidos burgueses também tentam
conquistar os votos de
todas as classes sociais. O discurso eleitoral é, por sua
natureza, um discurso
policlassista e, portanto, despolitizante.
De nada adianta os
partidos de “esquerda”
lamentarem que os trabalhadores votem nos conservadores,
pois são eles que reproduzem
a política da burguesia. Daí o voto nulo, que em muitos
casos representa a
negação do sistema eleitoral, ser mais politizado do que
pode parecer à
primeira vista. Mas o rompimento com a política da burguesia
significa, ao
mesmo tempo, um rompimento com a social-democracia que
raivosa se volta contra
os trabalhadores, por serem “despolitizados”. Do ponto de
vista da
social-democracia, os trabalhadores são despolitizados e do
ponto de vista do
proletariado a social-democracia é despolitizada e
despolitizante. Isto é
possível porque se entende coisas diferentes por “política”
e a política da
burguesia é diferente da política dos trabalhadores.
A concepção burguesa da
política, reproduzida
pela social-democracia, afirma que a luta política deve
convergir para o
estado, que é a “síntese” da sociedade civil. O estado
burguês assume a
aparência universal e esse processo de universalização cria
o “interesse
nacional” e a “cidadania”. Esta é uma das formas de se
apagar as lutas de
classes na sociedade, pois todos são “cidadãos” que defendem
o “interesse
nacional”. A cidadania retira as diferenças de classe e o
interesse nacional as
diferenças dos interesses de classe[10].
Marx dizia que o direito
é a aplicação de uma
regra única a seres humanos que são diferentes e, sendo
assim, pode-se dizer
que o “direito ao voto” ou o “direito a candidatar-se” não
passa de uma farsa,
pois os eleitores e aqueles que querem ser candidatos são
pessoas com inúmeras
diferenças (financeiras, políticas, culturais, etc.), ou
seja, o direito igual
é aplicado a pessoas de diferentes classes sociais e por
isso significa a
desigualdade e a injustiça. Trata-se de uma armadilha
ideológica, pois ao invés
do operário, burocrata, camponês, burguês, etc., aparece “o
cidadão”. Os
cidadãos possuem os mesmos direitos e portanto são, nessa
inversão da
realidade, iguais. Por isso, “a emancipação política é a
redução do homem, de
um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente e, de outro, a cidadão do estado, a pessoa moral”. Porém,
“somente quando o homem
individual real recupera em si o cidadão abstrato e se
converte, como homem
individual, em ser
genérico, em seu
trabalho individual e em suas relações individuais; somente
quando o homem
tenha reconhecido e organizado suas forces propes [próprias
forças] como forças
sociais e quando,
portanto, já não
separa de si a força social sob a forma de força política, somente então se processa a
emancipação humana”[11].
A partir disto se coloca
a opção: os partidos
de “esquerda” fazem uma política de classe e se arriscam a
perder as eleições
mas contribuem na organização e mobilização dos
trabalhadores ou fazem a
política da burguesia e podem até ganhar as eleições mas
neste caso já estarão
desfigurados e isto seria contrário aos interesses da classe
trabalhadora.
A luta das esquerdas
deve ser contra o
capitalismo e sua democracia. Isto não quer dizer que se
deve abandonar
definitivamente qualquer tipo de participação em tal
“democracia”. Mas esta
participação deve estar subordinada aos interesses de classe
do proletariado e
que por isso tem como objetivo principal acirrar as
contradições do capitalismo
e colocar em evidência o programa comunista. Contudo,
deve-se deixar claro que
a participação ou não-participação, assim como suas formas,
dependem
fundamentalmente do momento histórico e da especificidade e
situação concreta
de cada país. A incompreensão da situação particular de cada
país leva
geralmente ao não-entendimento de certos fenômenos e por
isso se desenvolve uma
prática política equivocada. Um exemplo disso foi a
incompreensão de Trotsky
sobre o papel do anarquismo e do POUM (Partido Operário de
Unificação Marxista)
na guerra civil espanhola, o que lhe valeu a ruptura com
Victor Serge e outros
militantes.
As esquerdas em vez de
se iludirem com a
democracia burguesa e com as reformas legais procurando,
sobre hegemonia das
classes auxiliares da burguesia, forma um “bloco histórico
reformista”,
deveriam assumir uma política de classe procurando, sob
hegemonia do
proletariado, formar um “bloco revolucionário”. Este
contaria com o
proletariado e com classes e frações de classes que podem
historicamente
cumprir um papel revolucionário, como, por exemplo, o
campesinato e o
lumpemproletariado. As organizações revolucionárias e os
movimentos sociais,
como o ecológico, o negro, o das mulheres, entre outros,
também devem compor
este bloco juntamente com os indivíduos revolucionários
provenientes de outras
classes sociais.
Além da composição
social diferenciada, o bloco
revolucionário difere do bloco reformista pelo projeto
político. O programa de
reformas caracterizado por ser antimonopolista,
antilatifundiário e
antiimperialista do bloco reformista não toca questões
essenciais e
caracterizadores do programa comunista, como a abolição do
mais-valor, do
estado e a autogestão social. O bloco reformista propõe
reformar o capitalismo
ao invés de superá-lo. O bloco revolucionário, por sua vez,
propõe a destruição
do capitalismo e a instauração do comunismo, o que significa
colocar a ênfase
na transformação das relações de produção e não em questões
superficiais.
Mas se a opção dos
partidos de “esquerda” for
ganhar as eleições, a situação se altera. Uma vez ganhando
as eleições, os
“representantes dos trabalhadores” não podem fazer muita
coisa no parlamento
por vários motivos: desde os limites constitucionais e
regimentais até a
composição majoritariamente conservadora que caracteriza o
parlamento, sem
falar na pressão do poder executivo e dos lobbies
extraparlamentares.
Caso conquiste o poder
executivo, o que
ocorrerá é que os “representantes dos trabalhadores” vão
administrar o
capitalismo para a burguesia. Existe uma contradição entre a
classe operária e
o poder político burguês e cabe a quem entra na luta
política escolher o lado
que vai ficar. A estrutura burocrática e hierárquica do
poder burguês e o seu
funcionamento condicionado pelo modo de produção capitalista
fazem com que,
independentemente de quem está no poder, o movimento
operário acabe sendo
reprimido por ele. Não é preciso apresentar os exemplos
disso no mundo,
inclusive no Brasil. As regras da democracia burguesa são
contrarrevolucionárias
e por isso não há sentido em dizer que ela é condição para
instauração do
socialismo. A instauração do socialismo só é possível com a
sua destruição.
Os ideólogos da
democracia burguesa também
dizem que a democracia é um valor estratégico permanente que
deve ser
preservado no socialismo (comunismo) convivendo com a
“democracia direta”.
Então vejamos se há compatibilidade entre democracia
representativa e socialismo.
O socialismo como projeto político ainda não foi realizado
historicamente,
embora tenha se concretizado em breves momentos e
posteriormente tenha sido
derrotado pela contrarrevolução, significa fundamentalmente
a socialização dos
meios de produção. Isto quer dizer que os meios de produção
se tornam
propriedade coletiva. Mas a propriedade só é verdadeiramente
coletiva se a
coletividade possuir a sua direção. Portanto, o socialismo
pressupõe a
autogestão. O socialismo significa o fim da divisão social
do trabalho. Ora, a
democracia representativa se baseia na divisão entre
representantes e
representados, o que leva fatalmente a divisão entre
dirigentes e dirigidos e
entre não-produtores e produtores: o representante não vai
dispor de tempo para
executar suas funções se for também um produtor. Assim, o
produtor perde o
poder de decisão em favor do não-produtor. Mantém-se a
divisão social do
trabalho e realiza-se a “perversão” da representação que se
transforma em nova
forma de dominação e exploração.
O que pode parecer
“perversão” da representação
é, na verdade, sua própria natureza. Na sociedade
capitalista as diversas
classes sociais deveriam elaborar um projeto político que
expressasse suas
necessidades, interesses, aspirações e escolher alguém para
apresentá-lo.
Entretanto, são as cúpulas que já detém o poder político e
financeiro que
preparam diversos programas políticos e os apresentam a
população. Esta é
obrigada a escolher um destes ou não escolher nenhum,
abstendo-se. Deve-se
acrescentar que nem todos os candidatos são eleitos e com
isso apenas parte da
população é “representada”, que é a parte dos eleitores que
votaram nos
candidatos vencedores. A representação significa a
transferência de poder do
representado para o representante.
Aqueles que compreendem
que no “socialismo”
deve haver uma união entre democracia representativa e
direta pensam que numa
sociedade socialista será diferente. Isto não é verdade,
pois, “numa sociedade
socialista, um poder político organizado sob formas de
democracia
representativa (eleição a cada tantos anos e sobre a base de
programa
genéricos, o indivíduo isolado como sujeito político,
concentração formal do
poder num corpo representativo) está condenado a ser mais
mistificado e
mistificante do
que numa sociedade capitalista.
Todas as decisões reais, e antes de mais nada a determinação
do plano
econômico, escaparão ao controle do eleitor e do parlamento:
um e outro serão
impotentes e não estarão preparados para exercer este
controle. O poder real
será então assumido por uma estrutura centralizada, por uma
minoria iluminada:
o partido (ou os partidos) dominante e a tecnocracia. E por
trás do véu da
soberania popular, das eleições, do parlamento, todos os
coletivos sociais
ficarão reduzidos à categoria de instrumentos consultivos ou
de correias de
transmissão da vontade de uma minoria”[12].
Resta lembrar que isto,
entretanto, não será socialismo.
A democracia
representativa não é um valor
universal e sim um valor burguês (específico de uma classe).
É também uma forma
de dominação burguesa que pode se transformar em uma forma
de dominação
burocrática. Marx já dizia que uma classe que pretende se
tornar uma nova
classe dominante apresenta seus interesses particulares como
os interesses
gerais da sociedade[13].
Uma vez no poder esta classe se apresenta como portadora e
representante de
toda a sociedade. A nova dominação de classe e a nova
sociedade classista
passam a ser consideradas “naturais” e “universais”,
invertendo a realidade na
esfera da consciência. É assim que a democracia “burguesa”
se torna um valor
“universal”.
A solução deste dilema
só pode surgir quando
aparecer uma classe que não pode se libertar sem, ao mesmo
tempo, abolir todas
as classes e, consequentemente, a dominação de classe em
geral. Esta classe é o
proletariado, pois ele ao se libertar concretiza a
libertação de toda a
sociedade. Assim, o interesse particular do proletariado é,
ao mesmo tempo, o
interesse geral da sociedade. A unidade do interesse
particular de classe e do
interesse geral da sociedade se materializa no proletariado.
Mas pode surgir, no
capitalismo, uma outra
classe social querendo se tornar uma nova classe dominante e
que, por isso,
deve apresentar seus interesses particulares como
universais. Como é na classe
operária que se dá a fusão do particular com o geral, esta
classe precisa se
autointitular representante ou vanguarda do proletariado.
Kautsky afirmou que o
movimento operário é incapaz de emancipar o proletariado
estando desprovido de
teoria, que é acessível aos meios burgueses[14].
Segundo Massimo
Salvadori, Kautsky pretendia
“desenvolver o marxismo” com a intenção de retirar os
aspectos “utopistas” do
pensamento de Marx e Engels. Mas acabou fazendo “uma revisão
do próprio
marxismo”. Qual o caráter desse revisionismo? Salvadori diz
que “esse
revisionismo refere-se aos seguintes pontos fundamentais: a
teoria da crise
‘final’ do capitalismo, a ‘ruptura’ da máquina estatal, o
autogoverno, o fim da
divisão do trabalho e a ‘extinção’ do Estado”[15].
Acrescente-se a isso a sua
tese de que são necessários os “métodos científicos” para se
alcançar a
consciência socialista e vemos claramente o seu caráter
burocrático.
A burguesia e a
burocracia são as classes que
têm o interesse em afirmar que a democracia é um valor
universal e Kautsky foi
o primeiro grande ideólogo da burocracia. Certamente o foi
de forma não
consciente. Trocando a ordem da frase de Marx, pode-se dizer
que assim como não
se julga uma época de transformação pela consciência que ela
tem de si mesma,
não se pode julgar um indivíduo pela consciência que tem de
si. Afinal, “não é
a consciência que determina a vida, mas a vida que determina
a consciência”[16].
Nem todos os que se
dizem socialistas realmente
o são. Como bem disse François Perroux, muitos “acreditam
estar morrendo pela
classe, morrem pelos rapazes do Partido. Acreditam estar
morrendo pela Pátria,
morrem pelos industriais. Acreditam estar morrendo pela
liberdade da Pessoa,
morrem pela Liberdade dos dividendos. Acreditam estar
morrendo pelo
Proletariado, morrem por sua burocracia. Acreditam estar
morrendo pr ordens de
um estado, morrem pelo dinheiro que mantém o estado.
acreditam estar morrendo
por uma Nação, morrem pelos bandidos que a amordaçam”[17].
Nós, à esquerda, ao
contrário da burocracia,
devemos formar um “bloco revolucionário” e incentivar a
auto-organização das
massas através de conselhos de fábrica, comitês de bairro,
etc. e, com isso,
destruir o estado burguês e sua “democracia”, construindo a
autogestão social,
a única forma possível que manifesta a etimologia da palavra
democracia:
governo do povo.
Voltar
para:
Marxismo
Original |
Comunismo
de
Conselhos
|
Marxismo
Autogestionário |
Outros
[1] Coutinho, Carlos
Nelson. A Democracia
Burguesa Como Valor Universal.
São Paulo, Ciências Humanas, 1980, p. 25.
[2] Luxemburgo, Rosa.
Reforma Social ou Revolução? São Paulo,
Global, 1986, p. 50.
[3]
É óbvio
que os escritos de Marx dão margem a esse tipo de
interpretação no que se
refere às forças produtivas mas não em relação ao estado.
Sobre as forças
produtivas Marx observou que a dialética dos conceitos
“forças produtivas” e
“relações de produção” apresenta limites que “estão por
determinar e que não
suprime a diferença real” (Marx, Karl.
Contribuição à Crítica
da Economia
Política. 2 edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983,
p. 227). De qualquer
forma, vários pensadores marxistas (como A. Gorz) e
não-marxistas (como Ivan
Illich) questionam a neutralidade das forças produtivas e a
técnica defendida
pelas “esquerdas” tradicionais.
[4] Coutinho, C. N.
ob. cit. p. 31.
[5] Marx, Karl. Manuscritos Econômicos e Filosóficos. In: Fromm, Erich. Conceito
Marxista do Homem. 3ª edição, Rio de Janeiro, Zahar,
1964, p. 171.
[6]
Cf. Kosik,
Karel. Dialética do Concreto. 4ª edição, Rio de
Janeiro, Paz e Terra,
1986.
[7]
Luxemburgo,
Rosa. Ob. cit., p. 100.
[8]
Cf. Viana,
Nildo. O Que São Partidos Políticos. Goiânia, Edições
Germinal, 2003.
[9]
Costa Neto, L.
Hegemonia e Política de Estado. Paz e Terra,
Vozes, 1988, p. 77.
[10]
Para
uma crítica mais aprofundada da ideologia da cidadania, cf.
Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da
Política Institucional no
Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
[11]
Marx, Karl. A Questão Judaica. São Paulo, Moraes, 1978, p.
51-52.
[12]
Magri, Lúcio. Parlamento ou Conselhos Operários. In: Pannekoek,
Anton e outros. Conselhos
Operários. Coimbra, Centelha, 1975, p. 109.
[13]
Marx, Karl. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de
Hegel. In: Marx,
Karl. Ob. Cit.
[14]
Kautsky, Karl.
As Três Fontes do Marxismo. São Paulo, Global,
s/d.
[15]
Salvatori, M. Premissas e Temas da Luta de Karl Kautsky contra o
Bolchevismo. In:
Mattick, P. e
outros. Karl Kautsky
e o Marxismo. Belo
Horizonte, Oficina de Livros, 1988, p. 164.
[16]
Marx, Karl e Engels, Friedrich. A
Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª edição, São Paulo,
Ciências Humanas, 1982,
p. 37.
[17]
Apud. Marcuse,
Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. 6ª
edição, Rio de Janeiro, Zahar,
1982, p. 194.